Locação na Lei do Inquilinato

INTRODUÇÃO: APRESENTAÇÃO SISTÊMICA DO TEMA

A PROPOSTA

As locações são tema de constante interesse sociojurídico e nunca será demais conhecer as nuances e atualidades sobre assunto tão presente na sociedade.

Com o curso de locações na Lei do Inquilinato – LI (Lei 8.245/91), pretendemos, a partir da experiência com clientes no escritório e com ações nos tribunais, guiar o estudante por questões básicas e, em seguida, levá-lo até o debate de atualidades da prática jurídica – tanto na prática consultiva, como na prática litigiosa.

O COMEÇO

Para essa caminhada, então, precisamos entender o enquadramento das locações dentro do sistema jurídico. Depois, direcionamos nosso olhar para o segmento específico que nos interessa, ou seja, as locações regidas pela lei do inquilinato.

A “teoria teórica” (perdão pelo trocadilho) é frequentemente alvo de resistência do estudante, ávido por “pôr a mão na massa”. Porém, é um erro estudar regras de “prazos e rotinas” sem a percepção do macro-sistema em que elas se inserem. Seria como tentar aprender a nadar fora da água – há algum valor na visão mecânica dos movimentos, mas você só aprenderá de fato a nadar se colocar esse movimento dentro do meio em que ele deve ser empregado.

TERMINOLOGIA

Historicamente, se falava em locação de serviço, empreitada e locação de coisas. Hoje, isso perdeu o sentido, pois os contratos foram especificados como prestação de serviço, empreitada e locação. Hoje, só falamos “locação”, sempre em referência à antiga ideia de locação “de coisas”.

A LOCAÇÃO EM GERAL

Os contratos de locação, todos, são negócios jurídicos bilaterais que têm por característica essencial a permissão de uso de determinado bem (móvel ou imóvel) em contrapartida ao pagamento de uma remuneração. Isso é simples, mas está longe de ser trivial. Essa informação faz com que saibamos que, para tratar de locações (como juristas), precisamos sempre colocar o problema enfrentado numa perspectiva de enquadramento amplo.

Isso porque, muitas vezes, a solução do problema real não estará na LI, mas numa análise de vício do negócio jurídico em geral, ou num princípio contratual amplo, ou numa regra de obrigações em geral, ou mesmo em aspectos teóricos do direito empresarial (para locações comerciais).

Não é nosso propósito, neste trabalho, aprofundar nessas questões, mas precisamos alertar o estudante para a complexidade sistêmica do tema. Ao tratar do micro, nunca esqueça o enquadramento macro a que ele pertence. Aquelas aulinhas básicas da faculdade fazem muita falta na hora de resolver inúmeros problemas reais…

PARECE, MAS NÃO É

Alguns negócios podem ter elementos semelhantes, mas não serem locação propriamente dita. Cessão de uso, por exemplo. Arrendamento mercantil (leasing), como segundo exemplo. Empréstimo, num terceiro exemplo. Todos esses são contratos que trazem permissão de uso, mas com especificidades que os distinguem da locação. Essa análise, longe de ser meramente especulativa, interfere diretamente na definição de que legislação aplicar ao caso.

Alguns outros negócios merecem destaque especial, como é o caso do usufruto e do direito de superfície. Essas figuras envolvem alguma forma de permissão de uso e potencialmente uma remuneração. Porém, são figuras de direitos reais, gerando vinculação direta sobre a coisa, ao passo que na locação a relação é contratual e o vínculo direto não é propriamente com a coisa, mas com o contratante (direitos pessoais).

Isso justifica algumas diferenças. Por exemplo, se o imóvel for vendido, o novo dono não poderia retirar o usufrutuário, ou o superficiário – porque eles possuem vínculo direto com o objeto. Entretanto, na locação, há situações em que o novo dono pode denunciar (extinguir) o contrato, botando o inquilino pra fora, pois a locação antes feita pelo inquilino e o dono anterior não afeta o novo dono, já que ele não participou dessa relação contratual.

LOCAÇÕES NO CÓDIGO CIVIL

O Código Civil – CC traz normas de caráter geral. Numa simplificação, podemos entender isso da seguinte forma: as regras do CC serão aplicadas sempre que não houver outra lei específica para o problema que estamos enfrentando. Assim, as regras do CC são aplicadas às locações que não estão abrangidas pela LI, nem por outra norma específica.

LEI ESPECÍFICA?

O que faz da LI uma lei específica (ou “especial”)? Ela traz regras que não valem para todas as locações possíveis, mas apenas para alguns casos particulares, que são as locações sobre bens imóveis urbanos – portanto, são dois pontos de atenção: o bem locado deve (a) ser imóvel; (b) ser urbano. Podemos ainda incluir mais uma atenção: (c) o contrato não ser expressamente excluído pela própria LI. Então, se o aluguel recai sobre móveis, sobre imóveis rurais, ou sobre imóveis urbanos expressamente excluídos, a lei de regência não será a LI – justamente porque o caso fugirá de sua especificidade.

APLICAÇÃO SUPLETIVA DO CÓDIGO CIVIL.

Justamente por ser norma geral, o CC será aplicado também para as locações de imóveis urbanos quando estivermos enfrentando uma situação em que não temos enquadramento exato na LI. A isso chamamos aplicação supletiva.

Ou seja, se o problema enfrentado refere-se à locação de imóvel urbano, temos a LI como primeira fonte de soluções. Porém, se o caso não tiver resposta exata na LI, será no CC que o profissional deverá buscar solução (claro, sem esquecer-se de outras possíveis normas, sobretudo a CF como topo valorativo do sistema jurídico).

IMPORTÂNCIA DE PRINCÍPIOS E REGRAS DE LARGA ABRANGÊNCIA.

Muitas questões da vida real só podem ser resolvidas de modo adequado quando buscamos regras gerais dos contratos, no próprio CC, e também princípios jurídicos amplos, tanto no CC, como também na CF. Desse modo, para se operar na prática jurídica contratual, além dos prazos e formas da LI, sempre temos que ter em mente o enquadramento das situações reais dentre de uma perspectiva mas ampla de função social da propriedade, função social do contrato, função social da empresa, boa-fé objetiva, regras de formação do contrato, regras sobre o cumprimento da obrigação contratual, requisitos gerais de validade dos negócios em geral etc.

Problema moderníssimo (em 2019) é a interferência de locações rápidas na vida condominial. É o caso de locações por aplicativos, como o Airbnb, caso mais notório. Se não se analisar a situação específica sob uma perspectiva que pondere a liberdade de contratar e a função social da propriedade, não se chegará a uma solução. Essas figuras/ferramentas não estão expressas no texto da LI e muito menos se restringem ao contrato de locação, mas devem ser dominadas para que se criem soluções para casos como esse.

Enfim, a prática requer que essas informações sejam conhecidas pelo profissional do direito. Não adiantaria decorar a LI e escorregar num requisito de validade “perdido” na parte geral do CC. Essas figuras teóricas, juntas, formam um todo – daí a ideia de uma visão sistêmica.

A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE LOCAÇÃO

A relação de locação de bens imóveis para residência ou comércio se colocam na perspectiva da função social da propriedade e do contrato. A função social pode ser entendida, numa simplificação didática, como a justificativa social que respalda um determinado direito. Por exemplo, o proprietário tem o direito de garantir e proteger sua propriedade, mas a justificativa para isso é que ele more no imóvel, ou empreenda licitamente no imóvel, ou mesmo faça renda lícita com o imóvel. Ele não terá seu direito de dono protegido para, por exemplo, poluir o meio ambiente.

No contrato de locação, temos algo assemelhado. Por um lado, o proprietário está dispondo de seu patrimônio para fazer renda; por outro, o inquilino está alcançando, pelo contrato, o direito de moradia, ou de ter um ponto para comércio, conforme o caso. Então os direitos do inquilino são fixados nessa perspectiva. Ele não terá garantido seu direito de uso, fixado contratualmente, se estiver atrapalhando a convivência coletiva, ou realizando atividades não autorizadas, por exemplo.

Portanto, quando na vida real um inquilino ou um locador desviam-se dessas finalidades/funções “socialmente aceitas”, dentro de uma ideia de adequação ao contexto social, os direitos previstos pelo ordenamento passam a estar num âmbito de abuso, configurando violação à função social e abuso de direito. Isso gerará o afastamento de proteções originalmente dadas por lei ou pelo contrato.

A FILOSOFIA DA LEI DO INQUILINATO

A LI foi editada em 1991 com um viés protetivo, intervencionista. O Legislativo enxergou na relação de locação (dentro da LI) uma relação desigual em que o locador seria o lado forte da relação, criando, então, mecanismos de proteção para o lado fraco, do inquilino. Claro que nem sempre é assim, mas o legislador pensou num alugue residencial ou mesmo comercial comuns. Um inquilino que aluga para morar com sua família, ou para montar seu negócio.

Nesse modelo, entendeu o legislador que o inquilino estaria “exposto” a abusos por parte do locador, que poderia “forçar” determinadas cláusulas contratuais diante da “necessidade” do inquilino ter o uso do imóvel, para morar ou para empreender. Com isso, a LI veio em 1991 com uma forte carga de protecionismo estatal, privilegiando direitos do inquilino em detrimento do direito de propriedade.

Porém, com o tempo notou-se uma carga de exagero nessa proteção, passando os direitos do inquilino a serem vistos como excessivos diante do também legítimo direito do locador. Essa mudança de visão ensejou a reforma parcial da lei, em 2009, com a Lei 12.112 – erroneamente chamada de “nova lei” do inquilinato (o que houve foi, repita-se, uma reforma parcial na mesma lei de sempre). Com essa reforma, houve o abrandamento de algumas proteções originalmente dadas ao inquilino, deixando a relação um pouco menos favorável a ele. Ainda assim, a LI tem uma natureza essencialmente protetiva a favor do locatário.

OS TEMAS DA LEI DO INQUILINATO

A LI é exemplo de norma que a teoria chama de microssistema jurídico, pois ela trata de vários aspectos de um único tema específico (diferente dos códigos, que tratam de vários aspectos de temas amplos). Assim, a LI traz regras de direito material civil, de direito material penal e de direito processual.

Na sua organização, o legislador dispôs uma parte para as locações, outra para os procedimentos. Na primeira parte, das locações, organizou a lei em regras gerais para todas as espécies, enquanto outra parte dispôs especificamente de cada uma das figuras – locação residencial, não residencial e para temporada. Na segunda parte, tratou de procedimentos. De novo, trouxe uma parte geral, aplicável a todas as ações; depois, regras específicas de cada uma das ações locatícias: despejo, consignação, revisional e renovatória.

Evidente, portanto, a necessidade de integrar as normas do direito material com as do direito processual. Nessa integração, é necessária a recuperação de normas gerais, tanto do CC, como do Código de Processo Civil – CPC, todos vinculados sob a força normativa dos valores constitucionais.

CONCLUSÃO PARCIAL

Até aqui, apresentamos algumas ponderações sobre o enquadramento do contrato de locação no macrossistema jurídico. Mostramos que o contrato de locação pode ser alvo de diferentes normas específicas e, ao mesmo tempo, deve sempre ser tratado na perspectiva de princípios e normas gerais amplas, que funcionarão como molduras apara a tela em análise. Tratamos da filosofia por trás da LI e da ideia de função social aplicada ao contrato de locação. Apresentamos a necessidade de integrar o direito processual ao direito material na análise de problemas de locação. Na sequência de nosso conteúdo, avançaremos para a apresentação das figuras de direito material civil da LI.

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